Tenho ficado assustado com os rumos da publicidade ultimamente. A meu ver, a publicidade brasileira, que teve grande protagonismo em nível mundial desde os anos 80 do século passado até os anos 2010, está perdida.
Não se trata de falta de técnica, ou de sofisticação, ou mesmo de racionalidade custo-benefício dos investimentos. Se trata de falta de ética. A publicidade brasileira, assim como o país, perdeu-se em termos de caráter.
Vou referir aqui, como exemplos da falta de ética da publicidade, algumas campanhas que você já deve ter visto. Uma é a campanha de alistamento às FFAA, paga pelo Ministério da Aeronáutica. Outra é uma campanha recente do MEC que divulga a existência de uma cartilha de orientação às crianças na volta às aulas. Por fim, vou tratar de um anunciante do setor privado.
Propaganda de Guerra
A campanha do alistamento militar, extremamente ostensiva, ultrapassa em muito os objetivos anunciados na peça, ou seja, o de fazer com que jovens que estão fazendo 18 anos compareçam numa unidade de recrutamento ou usem o seu celular para alistarem-se. A campanha parece buscar na verdade querer comprar proteção às FFAA junto aos meios de comunicação, de um lado, e potencializar uma imagem positiva e a sua presença diária junto à sociedade, de outro. (Ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=v4F6aknZzsE ).
Na lógica da propaganda de guerra desencadeada pelas FFAA, em especial, e pelas forças que elegeram Bolsonaro, a campanha publicitária em curso neste momento se enquadra na linha de “propaganda cinza”, ou seja, aquela que se dirige ao setor intermediário da zona de conflito e busca atraí-lo para um dos lados. O público-alvo, no caso, é o povo brasileiro.
A publicidade brasileira nunca foi muito rigorosa em relação a sua “linha criativa”. Diante de qualquer aceno de um cliente poderoso, desdobrou-se em mesuras e genuflexões. Quando Lula chegou ao poder, no dia seguinte as grandes agências que haviam torcido e atuado contra o ex-metalúrgico falavam em solidariedade, justiça social e direitos em sua linguagem publicitária. Hoje, entretanto, não é só disso que se trata. Não é mais uma tentativa de aproximação com um novo cliente no mercado. O que as grandes agências estão fazendo é trabalhar conscientemente por um projeto autoritário, construindo a sua defesa nos mínimos detalhes.
A volta dos que não foram
O comercial do alistamento militar fala por si só. Ele é simpático, mostra as FFAA como um ambiente agradável. Nada perto da imagem do recruta sendo “disciplinado”. Ou seja, é um comercial que também – e até principalmente- fala pra fora, fala para a sociedade brasileira tentando dizer: “olha, nós do Exército, Marinha e Aeronáutica somos caras legais, somos o alicerce da nação”. A ideia que a peça publicitária passa é a de projetar as FFAA como dirigentes da Nação. O que de fato está acontecendo, seja através do “mau militar” na presidência, seja através do vice Hamilton Mourão, ou dos milhares de militares colocados em postos chaves no governo.
Pode dar errado? Claro que pode. Mas o objetivo da peça publicitária é este: construir uma imagem positiva das FFAA e abrir espaço na sociedade para a ideia de que as FFAA devem “mandar em tudo”. Além disso, pelo volume de investimentos aplicados, atrair os veículos tradicionais e a opinião pública para esta estratégia ou, pelo menos, para uma posição de neutralidade.
Tem nexo? Infelizmente tem.
A responsabilização do indivíduo
Outra abordagem muito usada pela publicidade nos últimos anos é a da responsabilização do indivíduo pelos próprios resultados. Assim, se você está desempregado, a culpa é sua. Com certeza, você não foi competente o suficiente. Quer um novo emprego? Esqueça! Torne-se um empreendedor. É uma narrativa presente não só na publicidade, mas também nos meios de comunicação, nos cultos, nas igrejas, enfim, em toda a sociedade.
Esta ideologia, trazida para o ambiente de crise e de pandemia, gerou peças publicitárias em 2020 que, vistas hoje, parecem loucura. Um exemplo é uma campanha do Bradesco ( ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=qxSRpW1kk-s ) ( e aqui: https://www.youtube.com/watch?v=CIytl3hlOzs ) do primeiro semestre do ano passado. A campanha é uma versão publicitária competente do discurso do presidente Bolsonaro sobre a pandemia, e joga sobre os ombros dos indivíduos a responsabilidade por resistir e se reinventar.
Outro exemplo, ainda mais emblemático, é um comercial do MEC (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=rxfIhlFNicA ). A propaganda divulga um Guia de Implementação de Protocolos de Retorno às Atividades Presenciais nas Escolas de Educação Básica. Durante um minuto, o MEC e o governo federal ficam estabelecendo regras do que Luana (a estudante do ensino básico) deve fazer para ficar segura. Causa espanto o CONAR não ter interferido para impedir a divulgação da peça. Ela é criminosa. Coloca nos ombros das crianças a responsabilidade de enfrentar o Coronavírus.
O que fazer
É muito pouco o que podemos fazer a respeito, mas buscar uma conscientização do que se passa pode ser um primeiro passo para construirmos uma crítica consistente a estes descaminhos éticos da criação publicitária brasileira. Houve um tempo em que a publicidade, ainda que seja um negócio e como tal visasse o lucro, buscava se inspirar em valores positivos. Compromisso com a verdade, defesa da liberdade, respeito à democracia, defesa da vida, da solidariedade, do humanismo embalavam uma escola criativa que vendia e encantava os consumidores. Havia ética na publicidade.
Hoje, podemos até nos enganar e nos deixar emocionar durante um tempo diante de peças como essa, do Bradesco (aqui https://www.youtube.com/watch?v=xlbnfU3bpJ0 ), mas apenas para, depois de alguns minutos de distanciamento e reflexão chegarmos à conclusão de que a propaganda natalina do banco que mais teve lucros na pandemia, de fato, por trás do discurso da esperança, divulga a naturalização das mortes pela COVID-19. É como se viesse nos dizer: Afinal, “todos nós vamos morrer um dia”, não é verdade? ///
* Paulo Cezar da Rosa, jornalista e publicitário, diretor da Veraz Red Marketing e da Veraz Comunicação.