Lula disse recentemente que a esquerda perdeu seu discurso. Não é só isso. A esquerda perdeu a linguagem do povo. E a sua coragem.
Dois fatos ocorridos nos últimos dias merecem ser analisados. Aqui, não pelo que são, por sua veracidade, por suas motivações, ou por seus autores. São fatos que merecem ser analisados por suas consequências, por sua eficácia em termos de linguagem, de comunicação e de marketing político.
A coragem que ainda falta
Um primeiro episódio destes últimos dias foi um enfrentamento feito pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, a uma tentativa de escracho por parte de bolsonaristas no Rio de Janeiro. Gleisi revida a agressão e “parte pra cima” dos bolsonaristas. Sua filha a ajuda no enfrentamento. Na sequência, expõe a agressão nas redes, identifica os agressores, anuncia ações legais e trabalha publicamente o tema, dando entrevistas etc.
Acredito que esta atitude de Gleisi Hoffmann tenha sido a primeira grande reação da esquerda à agressividade da ultradireita. Gleisi demonstrou pela primeira vez que o fascismo pode ser enfrentado de maneira eficaz e começa a ter um inimigo à sua altura.
De importância similar, me vem à cabeça a reação em grande medida estupefacta da deputada Maria do Rosário ao então deputado Jair Bolsonaro nos corredores do Congresso. A culpa não é de Maria do Rosário. Lá atrás a esquerda não estava preparada para enfrentar este tipo de coisa. Naquele momento, a esquerda ainda era governo e não tinha a liberdade de ação que o fato de estar fora do sistema permite.
Desprezado no processo eleitoral como um azarão, visto como incapaz de ter e apresentar um projeto, Bolsonaro, em que pese suas inúmeras fragilidades, tem se mostrado um inimigo que precisa ser compreendido e respeitado, como condição para que venha a ser derrotado um dia. Simbolicamente, Gleisi Hoffmann fez há poucos dias o que, na minha opinião, a esquerda deveria ter feito desde 2013: enfrentado a direita no terreno em que ela atacou. No mano a mano, no pau, no pescoção, no escracho, no grito, no “politicamente incorreto”.
E notem que Gleisi não precisou muito mais que coragem e pessoas em volta dela com um celular na mão. Gleisi, ao partir pra cima dos bolsonaristas, transmite uma mensagem clara para os militantes de seu partido e para toda a esquerda: É preciso enfrentar e colocar na defensiva estes fascistas. É preciso fazer com que eles voltem para os porões de onde saíram.
Um segundo episódio que quero destacar foi protagonizado pelo Senador Cid Gomes, antes ainda do que envolveu a presidenta do PT. Irmão de Ciro Gomes, Cid também teve uma atitude parecida. O senador, por uma outra vertente simbólica, quando pegou a retroescavadeira e foi pra cima do motim da polícia no Ceará, mostrou também coragem. Uma coragem à moda antiga. Nordestina. Mas também elogiável. Que se comunica com amplos setores do povo brasileiro. Cid Gomes, com sua retroescavadeira e dois tiros no corpo antecipou Gleisi Hoffmann. E esta, junto com o senador, está mostrando um caminho.
A ultradireita diante do próprio veneno
Sei que o tema é controverso e permite muitas interpretações. De comum, Gleisi e Cid anunciam um processo de reconexão com a língua do povo. Ao enfrentarem os adversários, mostram coragem, sangue nos olhos, convicção em relação ao que acreditam. E esta é uma mensagem que se transmite pelos atos, de forma quente, emocional. Trazem de volta à esquerda uma coragem e determinação que anda muito em falta.
Coragem, honra, valentia, fé são valores fundantes da ultradireita. Ao se depararem com Gleisi e Cid Gomes demonstrando coragem e valentia superiores às suas, os bolsoristas recuaram. E o povo se identificou. Por quê? Por um motivo muito simples: Gleisi e Cid, com suas atitudes, se conectam com a coragem do povo e falam a sua língua. Gleisi mostra que é uma mulher de fibra, que não leva desaforo pra casa. Gomes faz o que se espera de um nordestino decidido.
Com estas ações, a esquerda começa a trilhar a disputa de valores com a ultradireita. Vale a pena assistir o filósofo e escritor Henry Bugalho a esse respeito. Henry diz coisas muito interessantes. Por exemplo, para ele chamar um fascista de fascista não surte nenhum efeito, porque ele se acha mesmo um fascista. Mas atacá-lo em seus valores surte um outro efeito. O fascista se sente agredido naquilo que ele mais preza em termos ideológicos. Não tem quase nenhum resultado travar um debate racional com um bolsonarista.
Penso que Gleisi Hoffmann e Cid Gomes merecem ser seguidos. Eles iniciaram o ano de 2020 inaugurando um novo discurso político de esquerda, à altura dos desafios que vem pela frente.